A justiça do absurdo: De O ESTRANGEIRO a O MITO DE SÍSIFO

segunda-feira, 12 de Maio de 2014 - 14:29
Redator (a)
Wanda Cunha


O professor Agostinho Ramalho, no último dia do curso “A justiça Absurda: uma leitura de O Estrangeiro, de Albert Camus”, pôs em evidência, para reflexões,  a sentença, o réu e o absurdo existente na referida obra. Na oportunidade, juízes do trabalho debruçaram-se sobre o texto literário e participaram das indagações propostas. A atividade ocorreu na manhã de quinta-feira (08), durante a I Semana de Formação de Magistrados, realizada pelo Tribunal Regional do Trabalho do Maranhão (TRT-MA), por meio da Escola Judicial (Ejud).

O livro analisado pelo professor divide-se em duas partes: a primeira, iniciada com a morte da mãe do antagonista, Meursault, e termina com a passagem em que esse personagem mata um árabe. A segunda parte teve início com o interrogatório e com a probabilidade de execução. Agostinho inicia o último dia do curso observando que a sentença fixa uma possibilidade, dentre diversas apresentadas; que é a produção de uma verdade,  fixação do sentido. E argumentou dentro do ponto de vista  etimológico. “Decidir vem do latim. (des/cindir). Terminar com a cisão entre isto e aquilo”, explicou. O professor lembrou que sentença sempre é proferida em nome de alguém ou alguma coisa. Em nome de Deus, da pátria, da lei. E, no caso de O Estrangeiro, em nome do povo francês.

Fazendo análise do texto, Ramalho ponderou que a decisão poderia ter sido proferida diferente. E completou que o júri que vai decidir está sujeito ao espetáculo, movido por um estado emocional, atiçado pelos mais variados motivos. O professor reler a parte do interrogatório em que o juiz dirige-se ao réu: “Por que atirou?”. Resposta do réu: “Por causa do sol”. A questão foi examinar o nexo, diante da qual se constatou o nexo psicológico, o motivo subjetivo. “O réu matou por causa do sol. Mas isso não poderá ser causa do direito. O jurista não abre mão do nexo, tem que saber o porquê”, evidenciou o professor. “No texto, se o leitor se situar dentro da descrição, vai verificar  que o personagem matou por causa do sol. Se não há ato, não se pode falar em autoria”, instigou Agostinho.

Em relação aos cinco tiros desferidos pelo réu, o professor também abriu caminhos para instigar os juízes presentes a participarem do texto literário: “Se ele morreu com o primeiro tiro, não se pode dizer que ele matou com os outros quatro. Seria impossível, porque não se mata um cadáver”.  Em relação à legítima defesa, indagou: “Será que houve excesso na legítima defesa? Será que houve a legítima defesa? O professor volta a uma passagem do texto: “Eu crispei minha mão que segurava o revólver. ” Homicídio culposo? Para ele, essa descrição da cena do crime mexe no ponto nevrálgico da lógica jurídica.

No entremeio das colocações, o professor concordava que todas as interpretações feitas pelos participantes do curso se tratavam de leituras plausíveis, e completava: “Você pode inferir isso e até o contrário disso”. Afinal, o leitor pode entrar na mente do personagem-narrador, mas o juiz não tem a capacidade de entrar na mente do réu. A análise da culpa e/ou inocência do personagem ganha um caráter machadiano, porque, como Capitu de Bentinho, cabia ao leitor decifrar o enigma de Meursault. Nessa dinâmica da discussão, lembrou Ramalho: “Nós estamos escrevendo juntos, relendo o texto. É uma coautoria; estamos dentro de uma perspectiva do leitor que não é a mesma dos juízes e jurados”. 

Meursault: o réu em julgamento -  O professor Agostinho Ramalho enfatizou a incredulidade do personagem diante de tantas tentativas, inclusive do juiz, de fazer o réu  se arrepender do ato criminoso. E citou passagens do livro em que tal fato ocorrera. “Não creio em Deus”. “Mais que arrependimento, sinto aborrecimento...”. E menciona o que diz Camus no prefácio da obra “O herói do meu livro se recusa a mentir”. Nesse raciocínio, faz um estudo etimológico do nome do herói Meursault. “Não é um nome existente no repertório francês; é uma construção do próprio Camus”. Diz que Meur, em francês, faz relação com o mar (Mer); que  meurtre significa assassínio, assassinato, homicídio; e que sault faz relação com salto (Saut), ou seja, um salto para o mar, para a morte...

Ao falar do absurdo propriamente dito, Agostinho Ramalho retoma a obra de Camus intitulada “O mito de Sísifo”, texto de filosofia em que ele tenta fazer a filosofia do absurdo. Camus abre o livro dizendo que só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Mas Agostinho adverte que o fato de você não se suicidar não significa dizer que você não escolheu outro absurdo, que é a vida. Optamos pela liberdade de viver. E que o que é viver a liberdade? Cita Erich Fromm, em “O Medo à Liberdade”, livro no qual este diz que os homens livres caem no vazio, não sabem o que fazer com a liberdade. Também fala do desamparo como uma condição do ser humano, citando Lacan e Freud. E ainda cita Sartre, observando que o absurdo foi dado ao homem e não conquistado. O professor disse que o personagem Meursault traduz o divórcio entre o homem e a vida.

O Mito de Sísifo -  “Mersault é a encarnação do homem absurdo, e todo aquele sistema é a encarnação da justiça absurda. Não é à toa que o Mito de Sísifo seja uma metáfora da condição humana, do absurdo da condição humana”, diz o professor. A partir disso, explicou o mito, observando que Sísifo, personagem da mitologia grega, era ardiloso. Ao contrariar Zeus, Sísifo foi condenado à morte. Mas pedira a mulher a não lhe prestar exéquias fúnebres. O ardil foi apenas para, quando chegasse ao mundo dos mortos, pudesse pedir para voltar por um período curto de tempo para castigar a mulher pela negligência. Foi concedido a Sísifo o direito de voltar à vida com a promessa de imediatamente retornar à morte, só que ele não retornou à morte como prometera, enganou a própria morte. Por isso, foi condenado a empurrar uma pedra até o topo da montanha e, quando de lá de cima ela rolasse montanha abaixo, Sísifo teria que novamente empurrá-la para o topo da montanha, em atitude ininterrupta e eterna.

Agostinho Ramalho explicou que o instante em que a pedra chega abaixo e que Sísifo sabe que deverá empurrá-la novamente para cima, é o momento chave do castigo, da consciência adquirida. É o momento que cada ser humano tem de lembrar que por mais que faça isto ou aqui, está fadado à morte.  “O absurdo é jogar uma partida que antemão está perdida”, diz. Cita “Tempos Modernos”, de Chaplin, para exemplificar o absurdo na vida mecanizado do homem contemporâneo.  “Ele já é desnecessário na própria fábrica”.

O absurdo - Ramalho também afirmou que o absurdo não é apenas a relação do homem no mundo, mas no seu mundo interno. “Há demônios. Eles vêm de dentro. Da mesma forma que os antigos acham que os sonhos vêm de fora, Freud vai dizer que os sonhos são mensagens de dentro criptografadas, cifradas que requerem decifração”.  Lembrou o artigo O Estranho, de Freud, no qual o autor diz que estranho é o mais familiar e o que mais íntimo é o mais estranho. “. Também fez relação com a letra de Caetano Veloso: “O que em mim é de mim desigual”. Nessa perspectiva, desembocou na Psicanálise. 

A participação dos juízes efervesceu. Ao final do curso, Agostinho Ramalho disse que o importante fora conseguir com que os juízes presentes buscassem interpretar a obra de Albert Camus  na perspectiva das relações de trabalho.  “O principal foi trazer essa inquietação que o livro desperta”. E mais: instigar a leitura de “O Estrangeiro”. Objetivo alcançado!...

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